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quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A Chave de Sara mostra que o Holocausto ainda não esgotou seu potencial.

É o horror que nunca termina. Seis milhões de pessoas morreram no Holocausto. 

Talvez seja mais tolerável - confortável? - pensar nesse número absurdo em bloco. 

De uma maneira abstrata, criando uma massa anônima. 

Mas esses milhões de homens e mulheres, adultos e crianças, idosos, tinham uma identidade, um rosto - e uma história.

A Chave de Sara, que estreou sexta, abriu no começo de agosto o 15.º Festival de Cinema Judaico.

Poucos dias depois, entrou em cartaz o polêmico Melancolia, de Lars Von Trier.

Melancolia teria suscitado discussões por sua estética - de alguma forma, criou-se uma oposição entre o filme do dinamarquês Von Trier e A Árvore da Vida, de Terrence Malick, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, em maio.

Mas Von Trier fez aquelas declarações pró-nazistas, de que compreendia e admirava Adolf Hitler e isso foi o estopim para que a polêmica sobre seu novo filme extrapolasse a estética. 

Um vendaval de críticas se abateu sobre Von Trier. 

Muita gente tentou argumentar que o destempero verbal faz parte da persona do autor.

Disseram que nada, em sua obra, justifica a etiqueta de nazista, que lhe foi colada. A culpa foi da imprensa, que fez sensacionalismo em torno do assunto. 

Essas pessoas - críticos? - queriam que o assunto fosse minimizado, quem sabe varrido para baixo do tapete, como tantos esqueletos escondidos nos armários.

O próprio Von Trier percebeu o exagero, tentou se desculpar, mas o estrago estava feito.

Vamos logo esclarecendo que A Chave de Sara não é tão bom quanto Melancolia, mas é importante. O diretor Gilles Paquet-Brenner é de ascendência judaica.

Queria falar sobre o Holocausto. Seu avô, um judeu alemão, casado com uma francesa, morreu nos campos de extermínio. 

Como ignorar o inominável? Paquet-Brenner sempre quis contar sua história, mas, como disse em entrevista ao Estado, nunca quis ser autobiográfico. 

E ele lembrou Roman Polanski, que esperou muitos anos para encontrar o viés para também reconstituir sua experiência no gueto de Cracóvia (em O Pianista). Paquet-Brenner encontrou a história que queria contar no livro de Tatiana de Rosnay.

Ela se tornou a autora mais vendida da França justamente pelo livro que inspirou A Chave de Sara. Uma jornalista, Kristin Scott Thomas, investiga uma das páginas mais sinistras da história do colaboracionismo francês, durante a 2.ª Guerra. Em 16 e 17 de junho de 1942, 13 mil judeus de Paris foram retirados de sua casas e reunidos no Vel d'Hiver, o velódromo da cidade. 

Dali, entregues aos nazistas pelo governo de Vichy, foram enviados para os campos de extermínio. Kristin - a personagem chama-se Júlia - investiga o assunto para uma reportagem. Descobre personagens, Sara e seu irmão pequeno.

Descobre mais - o envolvimento da família do marido. O filme é sobre culpa, responsabilidade, sobre o momento em que ambas convergem.

Grandes documentaristas, como Claude Lanzmann (Shoah) e Marcel Ophuls (Le Chagrin et la Pitié), fizeram documentários que se tornaram clássicos, sobre o Holocausto e o colaboracionismo. 

Louis Malle, pela mesma época, os anos 1970, tratou o colaboracionismo em chave de ficção, em Lacombe Lucien.

Na entrevista ao Estado, Paquet-Brenner explicou que não é historiador nem jornalista. Ele entende o ponto de vista de Claude Lanzmann, que veio ao Brasil e exibiu seu monumental Shoah no Festival de Cinema Judaico. 

Lanzmann acha que não se deve tratar o Holocausto como ficção. Paquet-Brenner, pelo contrário, admite que não saberia tratar do Vel d'Hiver nem da história de Sara como documentário. 

E nem queria - seu desejo era fazer com que o espectador compartilhasse a culpa de Sara, a responsabilidade de Júlia, que pode lhe custar o casamento.

O filme tem suspense, emoção. Alguns críticos acham que tem emoção demais.

Um pouco de sobriedade seria bem-vindo. A sobriedade, a bem da verdade, está na interpretação premiada de Kristin Scott Thomas, que eleva a qualidade (e a voltagem) de A Chave de Sara.

No Brasil, desde o Festival Judaico, a crítica tem sido reticente com o filme.

Nos EUA e no Japão, A Chave de Sara faturou elogios e bilheterias massivas - o sucesso nos cinemas norte-americanos bateu o recorde da Piaf de Marion Cotillard. Paquet-Brenner lembra que, quando Marcel Ophuls fez seu documentário - em 1971 -, muita gente que havia colaborado com os nazistas em Clermond Ferrand, durante a guerra, ainda estava viva. E ninguém tinha interesse em que a história fosse (re)contada.

Hoje, ele conta a história do Vel d'Hiver para uma nova geração que não viveu os fatos nem se comprometeu. 

Na França, a comoção foi grande - e A Chave de Sara reabriu o debate sobre um tema até hoje incômodo, o colaboracionismo.

É um tema forte, mas o que faz do filme uma experiência insustentável é a tragédia individual do irmão de Sara. 

O que ocorre com ele é mais que doloroso. 

De volta ao início do texto. O horror do Holocausto parece não ter fim.

Fonte: http://www.estadao.com.br

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