Augustus Nicodemus explica que a frase de Davi não tem o sentido que muitos evangélicos usam para impedir críticas à pastores.
Pastor questiona o famoso jargão "não toque no ungido do Senhor" |
O
reverendo Augustus Nicodemus Lopes, da Igreja Presbiteriana do Brasil,
escreveu um artigo contestando a frase famosa entre os evangélicos que
fala sobre “não tocar no ungido do Senhor”, usada para frear todos os
que criticam líderes religiosos.
Ao citar alguns dos versículos do
livro de I Samuel onde Davi não aceita matar Saul e impede que outros
façam, o chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie alerta que
naquela época os reis de fato era ungidos, isto é, escolhidos pelo
próprio Deus para governar o povo.
“A razão pela qual Davi não
queria matar Saul era porque reconhecia que ele, mesmo de forma indigna,
ocupava um cargo designado por Deus.
Davi não queria ser culpado de
matar aquele que havia recebido a unção real”, explica Nicodemus.
Mesmo
com temor de tirar a vida de Saul, Davi não deixou de confrontá-lo e
acusá-lo por suas injustiças e perversidades.
Ainda assim, depois que
Saul foi morto, ele escreveu um salmo de gratidão a Deus por tê-lo
livrado do “homem violento”, como está escrito em Salmo 18:48.
“Em
resumo, Davi não queria ser aquele que haveria de matar o ímpio rei
Saul pelo fato do mesmo ter sido ungido com óleo pelo profeta Samuel
para ser rei de Israel.
Isto, todavia, não impediu Davi de enfrentá-lo,
confrontá-lo, invocar o juízo e a vingança de Deus contra ele, e
entregá-lo nas mãos do Senhor para que ao seu tempo o castigasse
devidamente por seus pecados.”
Nicodemus diz que não consegue
entender como a história de Davi pode ser usada para impedir que as
pessoas questionem, confrontem ou discordem de pastores ou pessoas que
ocupem a posição de autoridade nas igrejas.
O reverendo
presbiteriano lembra que Paulo orienta no livro de Timóteo sobre a
repreensão aos presbíteros indicando que estes sejam repreendidos diante
de todos da congregação para que os demais tenham temor.
“Nunca
os apóstolos de Jesus Cristo apelaram para a “imunidade da unção” quando
foram acusados, perseguidos e vilipendiados pelos próprios crentes”,
escreveu.
Augustus Nicodemus também critica os líderes que usam
tais versículos para impedir que os fiéis falem sobre seus erros.
“Homens de Deus, os verdadeiros ungidos por Ele para o trabalho
pastoral, não respondem às discordâncias, críticas e questionamentos
calando a boca das ovelhas com ‘não me toque que sou ungido do Senhor’,
mas com trabalho, argumentos, verdade e sinceridade”.
Leia:
Há várias passagens na Bíblia onde aparecem expressões iguais ou semelhantes a estas do título desta postagem:
A
ninguém permitiu que os oprimisse; antes, por amor deles, repreendeu a
reis, dizendo:
Não toqueis nos meus ungidos, nem maltrateis os meus
profetas (1Cr 16:21-22; cf. Sl 105:15).
Todavia, a
passagem mais conhecida é aquela em que Davi, sendo pressionado pelos
seus homens para aproveitar a oportunidade de matar Saul na caverna,
respondeu:
“O Senhor me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor,
isto é, que eu estenda a mão contra ele [Saul], pois é o ungido do
Senhor” (1Sm 24:6).
Noutra ocasião, Davi impediu com o
mesmo argumento que Abisai, seu homem de confiança, matasse Saul, que
dormia tranquilamente ao relento:
“Não o mates, pois quem haverá que
estenda a mão contra o ungido do Senhor e fique inocente?” (1Sm 26:9).
Davi
de tal forma respeitava Saul, como ungido do Senhor, que não perdoou o
homem que o matou:
“Como não temeste estender a mão para matares o
ungido do Senhor?” (2Sm 1:14).
Esta relutância de Davi em
matar Saul por ser ele o ungido do Senhor tem sido interpretado por
muitos evangélicos como um princípio bíblico referente aos pastores e
líderes a ser observado em nossos dias, nas igrejas cristãs.
Para eles,
uma vez que os pastores, bispos e apóstolos são os ungidos do Senhor,
não se pode levantar a mão contra eles, isto é, não se pode acusa-los,
contraditá-los, questioná-los, criticá-los e muito menos mover-se
qualquer ação contrária a eles.
A unção do Senhor funcionaria como uma
espécie de proteção e imunidade dada por Deus aos seus ungidos. Ir
contra eles seria ir contra o próprio Deus.
Mas, será que é isto mesmo que a Bíblia ensina?
A
expressão “ungido do Senhor” usada na Bíblia em referência aos reis de
Israel se deve ao fato de que os mesmos eram oficialmente escolhidos e
designados por Deus para ocupar o cargo mediante a unção feita por um
juiz ou profeta.
Na ocasião, era derramado óleo sobre sua cabeça para
separá-lo para o cargo.
Foi o que Samuel fez com Saul (1Sam 10:1) e
depois com Davi (1Sam 16:13).
A razão pela qual Davi não
queria matar Saul era porque reconhecia que ele, mesmo de forma indigna,
ocupava um cargo designado por Deus.
Davi não queria ser culpado de
matar aquele que havia recebido a unção real.
Mas, o que
não se pode ignorar é que este respeito pela vida do rei não impediu
Davi de confrontar Saul e acusá-lo de injustiça e perversidade em
persegui-lo sem causa (1Sam 24:15).
Davi não iria matá-lo, mas invocou a
Deus como juiz contra Saul, diante de todo o exército de Israel, e
pediu abertamente a Deus que castigasse Saul, vingando a ele, Davi (1Sam
24:12).
Davi também dizia a seus aliados que a hora de Saul estava por
chegar, quando o próprio Deus haveria de matá-lo por seus pecados (1Sam
26:9-10).
O Salmo 18 é atribuído a Davi, que o teria
composto “no dia em que o Senhor o livrou de todos os seus inimigos e
das mãos de Saul”.
Não podemos ter plena certeza da veracidade deste
cabeçalho, mas existe a grande possibilidade de que reflita o exato
momento histórico em que foi composto.
Sendo assim, o que vemos é Davi
compondo um salmo de gratidão a Deus por tê-lo livrado do “homem
violento” (Sl 18:48), por ter tomado vingança dos que o perseguiam (Sl
18:47).
Em resumo, Davi não queria ser aquele que haveria
de matar o ímpio rei Saul pelo fato do mesmo ter sido ungido com óleo
pelo profeta Samuel para ser rei de Israel.
Isto, todavia, não impediu
Davi de enfrentá-lo, confrontá-lo, invocar o juízo e a vingança de Deus
contra ele, e entregá-lo nas mãos do Senhor para que ao seu tempo o
castigasse devidamente por seus pecados.
O que não
entendo é como, então, alguém pode tomar a história de Davi se recusando
a matar Saul, por ser o ungido do Senhor, como base para este estranho
conceito de que não se pode questionar, confrontar, contraditar,
discordar e mesmo enfrentar com firmeza pessoas que ocupam posição de
autoridade nas igrejas quando os mesmos se tornam repreensíveis na
doutrina e na prática.
Não há dúvida que nossos líderes
espirituais merecem todo nosso respeito e confiança, e que devemos
acatar a autoridade deles – enquanto, é claro, eles estiverem submissos à
Palavra de Deus, pregando a verdade e andando de maneira digna, honesta
e verdadeira.
Quando se tornam repreensíveis, devem ser corrigidos e
admoestados.
Paulo orienta Timóteo da seguinte maneira, no caso de
presbíteros (bispos/pastores) que errarem:
“Não aceites denúncia contra presbítero, senão exclusivamente sob o depoimento de duas ou três testemunhas.
Quanto aos que vivem no pecado, repreende-os
na presença de todos, para que também os demais temam” (1Tim 5:19-20).
Os
“que vivem no pecado”, pelo contexto, é uma referência aos presbíteros
mencionados no versículo anterior. Os mesmos devem ser repreendidos
publicamente.
Mas, o que impressiona mesmo é a seguinte
constatação.
Nunca os apóstolos de Jesus Cristo apelaram para a
“imunidade da unção” quando foram acusados, perseguidos e vilipendiados
pelos próprios crentes.
O melhor exemplo é o do próprio apóstolo Paulo,
ungido por Deus para ser apóstolo dos gentios.
Quantos sofrimentos ele
não passou às mãos dos crentes da igreja de Corinto, seus próprios
filhos na fé!
Reproduzo apenas uma passagem de sua primeira carta a
eles, onde ele revela toda a ironia, veneno, maldade e sarcasmo com que
os coríntios o tratavam:
“Já estais fartos, já estais
ricos; chegastes a reinar sem nós; sim, tomara reinásseis para que
também nós viéssemos a reinar convosco.
Porque a mim me parece que Deus nos pôs a nós, os apóstolos, em último lugar, como se fôssemos condenados à morte; porque nos tornamos espetáculo ao mundo, tanto a anjos, como a homens.
Nós somos loucos por causa de Cristo, e vós, sábios em Cristo; nós, fracos, e vós, fortes; vós, nobres, e nós, desprezíveis.
Até à presente hora, sofremos fome, e sede, e nudez; e somos esbofeteados, e não temos morada certa, e nos afadigamos, trabalhando com as nossas próprias mãos.
Quando somos injuriados, bendizemos; quando
perseguidos, suportamos; quando caluniados, procuramos conciliação; até
agora, temos chegado a ser considerados lixo do mundo, escória de
todos.
Não vos escrevo estas coisas para vos envergonhar;
pelo contrário, para vos admoestar como a filhos meus amados.
Porque,
ainda que tivésseis milhares de preceptores em Cristo, não teríeis,
contudo, muitos pais; pois eu, pelo evangelho, vos gerei em Cristo
Jesus.
Admoesto-vos, portanto, a que sejais meus imitadores” (1Cor
4:8-17).
Por que é que eu não encontro nesta queixa de
Paulo a repreensão, “como vocês ousam se levantar contra o ungido do
Senhor?
” Homens de Deus, os verdadeiros ungidos por Ele para o trabalho
pastoral, não respondem às discordâncias, críticas e questionamentos
calando a boca das ovelhas com “não me toque que sou ungido do Senhor,”
mas com trabalho, argumentos, verdade e sinceridade.
“Não toque no ungido do Senhor” é apelação de quem não tem nem argumento e nem exemplo para dar como resposta.
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